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Contra ditadores e senhores

O que a onda antifascista e a morte de Miguel têm em comum além do coronavírus

A nova onda de manifestações contra o governo Bolsonaro trouxe o antifascismo de volta ao debate público. Porém, entre Xuxa se declarar antifascista e afirmar que não é de esquerda nem de direita e o presidente associar antifascista a terrorista, tem muita confusão no ar. No compasso da conjuntura, o antirracismo se amplifica: nos Estados Unidos, o assassinato de George Floyd impulsionou o imaginário popular contra o racismo estrutural. Em Pernambuco, a morte do menino Miguel, de 5 anos, atrai gente para as ruas e nos lembra da importância da luta do povo negro contra o racismo que se reproduz desde a colônia. Essas lutas não só acontecem conjuntamente durante a pandemia, como historicamente estão ligadas à luta dos movimentos de esquerda pela emancipação popular.

Todo antifascista tem de ser antirracista. Sempre.

Lucy Parsons, militante anarquista, 1886
Lucy Parsons, militante anarquista, 1886

Vamos começar do começo pois História não é bagunça: antifascismo é, na raiz, se opor ao fascismo. E um dos principais troncos do discurso fascista é a SUPREMACIA BRANCA. Por isso, todo fascismo é racista. Todo. Além do caso indiscutível da Alemanha nazista, tanto a Itália de Mussolini, quanto o Integralismo no Brasil eram racistas – mesmo que este último afirmasse que não.

O fascismo italiano concebeu um “racismo místico” e caucasiano com leis que perseguiam politicamente o povo judeu, ou que simplesmente massacravam à época os povos de África com o seu imperialismo, sendo estes perseguidos de forma aberta e brutal, e os primeiros por meio da discriminação pura e simples, sob o lema “discriminar não significa perseguir”. Já o Integralismo defendia que os povos indígenas e afrodescendentes deveriam obrigatoriamente se fundir aos ideiais da “civilização cristã” de origem portuguesa, perdendo assim suas características e particularidades em nome de uma suposta raça mestiça autenticamente brasileira.

Aqui no Brasil, e especialmente em Pernambuco, o racismo é parte de nossa História e de nossas práticas. Resquícios coloniais estão presentes de forma descarada. A casa-grande permanece perseguindo e massacrando o aquilombamento do povo negro e pressionando-o em direção à senzala. Em meio a uma democracia de fachada e burguesa, decretou-se às negras e negros uma liberdade que nunca foi vivida de fato. O povo negro continua com poucos direitos ou com nenhum, em indíces alarmantes de pobreza e precariedade. As mulheres negras são as que mais sofrem com os hábitos coloniais que seguem existindo, sendo empurradas a formar um exército de trabalhadoras domésticas para servir à casa-grande.

O caso do menino Miguel Otávio Santana é retrato disso. Aos 5 anos de idade, Miguel faleceu após despencar dos absurdos 35 metros de altura das Torres Gêmeas enquanto a patroa de sua mãe fazia as unhas. A mãe, trabalhadora doméstica, recebeu a ordem de passear com o cachorro e teve de deixar o filho aos cuidados de Sarí Gaspar Côrte Real, esposa do prefeito de Tamandaré. Patroa e prefeito, aliás, pertencem a oligarquias tanto empresarial quanto política. Assim, compõem uma aristocracia bem típica desta eterna capitania. E é simbólico que esta fatia da elite resida na dupla de prédios de luxo que ameaça o caráter popular do bairro de São José e demarca um projeto de higienização da cidade.

A morte de Miguel é mais um ato de racismo cometido pela elite desta terra de atmosfera colonial. Mesma elite que aposta na fascistização da sociedade e da política quando oportuno. Sem arrodeios, racismo e tirania andam sempre de mãos dadas. E, por isso, se opor ao fascismo é também se opor ao racismo.

Somos antifascistas porque somos de esquerda

Imagem da Revolução espanhola, 1936.
Imagem da Revolução espanhola, 1936.

Tanto fascismo como racismo são males modernos gerados e reforçados pelo capitalismo e pelo colonialismo. Por isso e não por acaso, foram combatidos pelos movimentos de esquerda, que em substância sempre se demarcaram como anticapitalistas e contra as opressões. E faz sentido. Movimentos de caráter socialista que tinham como pauta a libertação ampla e irrestrita do povo e da classe trabalhadora combateram estes males e foram também protagonistas da luta antifascista .

Na primeira metade do século XX, houve forte presença de amplos setores revolucionários e socialistas que se opunham ao fascismo. Em Roma, a “Arditi del Popolo” (Resistência do Povo) foi pioneira na resistência a Mussolini. A “Schwarze Scharen” (Rebanho Preto, ou Tropas Pretas), na Alemanha foi criada para proteger reuniões do sindicato anarcossindicalista União dos Trabalhadores Livres da Alemanha (FAUD) e da Juventude Anarquista. Na Espanha, o feminismo da Mujeres Libres e o sindicalismo da CNT combateram frontalmente as tropas fascistas do general Franco em 1936. No Brasil, o Comitê Antifascista (composto por anarquistas) e a Frente Única Antifascista (FUA) (trotskista), enfrentaram os integralistas durante a década de 1930, com destaque para a batalha de rua conhecida como “A revoada das galinhas verdes”.

O antifascismo, portanto, se originou e continua no seio das lutas socialistas. Vale lembrar que as cores da bandeira “antifa” são vermelha e preta pois representam o sangue dos que lutaram e o luto pelos que tombaram na busca por uma sociedade igualitária. As figurinhas e memes que vêm circulando com outras cores podem mesmo ser muito bonitas e engraçadas, mas também podem servir para transformar uma ideia tão necessária e urgente em mais uma piadinha de internet.

Da história às cores, o antifascismo é de esquerda.

Fascismo e racismo têm de ser destruídos

 

Charge do cartunista Aroeira sobre Bolsonaro e Netanyahu
Charge do cartunista Aroeira sobre Bolsonaro e Netanyahu, a qual foi alvo de processo

Declaramos isto porque a direita, além de nos roubar todos os dias via políticas de Estado, agora quer apagar o que o sangue de milhões gravou nas páginas da História. Fascismo é, em último caso, o nome que devemos dar para as atrocidades que eles defendem. E terrorismo é o que faz o governo Bolsonaro: jogar o povo à miséria no meio de uma crise sanitária mundial. Enquanto nós, antifascistas e de esquerda, integramos movimentos que distribuem mantimentos e kits de limpeza e tentamos, com muito suor e sacrifício, assegurar a resistência da população negra e pobre neste momento tão dramático.

A família de Miguel não deveria estar trabalhando. Ele não deveria estar perdido naquelas torres enquanto patrões com ares de sinhô e sinhá continuam apreciando a vista que privatizaram, como uma afronta. Miguel tombou por racismo. Sua família e milhões de outras estão sofrendo as consequências de ideias e práticas que, estas sim, deveriam ser jogadas no fosso de uma História que não queremos que exista mais.

Antifascismo é romper com tiranos. Antirracismo é romper com os senhores. Nada mais antifascista que apoiar a luta do povo preto.

A resistência é vermelha. A resistência é negra.
Arriba las que luchan! Arriba los que luchan!
Miguel, presente.

Pílulas de História: Antifascismo no mundo e no Brasil

Selo Antifascista
Selo Antifascista com as cores corretas: vermelha e negra
Para quem está se perguntando de onde veio o antifascismo, ou querendo propagar como é desprezível a apropriação “Fascistas Antifascistas“, seguem referências que vão rechear as conversas sobre o tema.

ITÁLIA, 1921: A primeira organização antifascista militante a resistir aos esquadrões de Mussolini foi a “Arditi del Popolo”, fundada em Roma pelo anarquista Argo Secondari no final de junho de 1921, congregando não apenas militantes anarquistas, mas também comunistas, republicanos e socialistas de outras vertentes.

ALEMANHA, 1929: Na Alemanha pré-ascensão de Hitler ao poder, foi fundada uma tropa de ação direta anarquista chamada “Schwarze Scharen” (Rebanho Preto, ou Tropas Pretas, nome dado devido à cor de suas roupas) que tinha por intenção proteger das milícias nazistas as reuniões do sindicato anarcossindicalista União dos Trabalhadores Livres da Alemanha (FAUD) e da Juventude Anarquista. Embora suas fileiras nunca excedessem em geral as centenas, em algumas cidades alemãs eles representavam a principal oposição antifascista durante o período.

ESPANHA, 1936: A Revolução Espanhola, revolução encabeçada pela CNT (Confederação Nacional do Trabalho), um dos maiores sindicatos anarcossindicalistas da História, teve como foco principal combater a ameaça fascista do general Francisco Franco e como finalidade primeira a defesa da Revolução Social e da construção do socialismo libertário. Nas lutas deste período, destacamos também a presença da “Mujeres Libres”, organização de mulheres que teve como uma das principais referências a lutadora e anarquista Lucía Sánchez Saornil.

BRASIL, década de 1930: No Brasil não foi diferente. Na primeira metade da década de 1930, referentes anarquistas da envergadura de Maria Lacerda de Moura, José Oiticica e Edgar Leuenroth, pertencentes tanto ao Centro de Cultura Social de São Paulo (CCS) quanto à Federação Operária de São Paulo (FOSP), construíram algumas das principais organizações de luta contra o Integralismo, como o Comitê Antifascista, em 1933, e tiveram certa participação na trotskista Frente Única Antifascista (FUA), além de forte participação em diversos comícios de rua daquele tempo. Tudo isto culminou na chamada “Batalha da Praça da Sé”, batalha campal que expulsou os integralistas das ruas, também conhecida como “A revoada das galinhas verdes” (a roupa deles era dessa cor), em outubro de 1934, com participação de diversas correntes de esquerda e grande protagonismo libertário, em que pese a presença do sapateiro anarquista João Peres, um dos mais vigorosos combatentes daquela jornada. Já durante o período da chamada Aliança Nacional Libertadora (ANL), em 1935, os libertários aderiram criticamente à entidade, pois mesmo concordando com suas pautas de luta social contra o latifúndio, contra o imperialismo e contra o fascismo, discordavam profundamente de certo culto à personalidade assim como da própria defesa explícita de reconstrução social através do aparelho do Estado presentes no interior do órgão. Em tempo: o Estado sempre foi encarado pelos anarquistas como um aparelho burocrático de dominação e violência de classe.

Referências

BRAY, Mark. Antifa: o manual antifascista. São Paulo: Autonomia Literária, 2017.

RODRIGUES, André. Bandeiras negras contra camisas verdes: anarquismo e antifascismo nos jornais A Plebe e A Lanterna (1932-1935). Tempos Históricos, Paraná, v. 21, p. 74-106, 2o Semestre de 2017.